☄️ O ano da pandemia foi salvo por uma geladeira russa e um quindim
Como inicialmente previsto, a passagem do Cometa é incerta e pode ser que não aconteça por meses (talvez anos) a fio. A última ocorrência foi literalmente no último dia de 2019 - um humilde erramos referente à edição anterior, enviada meio dia em ponto, doze horas antes de 2020 começar.
E aí 2020 começou e, bom, você aí também tá passando por esse ano e vai conseguir me perdoar por não ter nem lembrado de vir pra cá e escrever um pouco.
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Pra não dizer que nem sequer lembrei da existência da newsletter, confesso que não só lembrei sim como até cheguei a abrir e rascunhar alguma coisa. Isso porque achei que devia relatar - com uma dose de lirismo, é claro - o fato de, abruptamente, ter saído da cidade de São Paulo. A essa altura provavelmente a maior parte dos leitores (que não são muitos) já deve estar sabendo, mas se você não sabe, fica aí a informação.
foto saudosista da vista do apartamento, tirada nos últimos dias por lá
A vida a dois profissionais autônomos num apartamento de 30 inflacionados metros quadrados no nono andar de um prédio, numa cidade que basicamente se resume a transporte público, aglomeração e convívio social, perde um pouco do propósito com uma pandemia instaurada. De repente, não tem mais como sair. Não dá pra ver os amigos. Nem ir na padaria (saudades, Beth). Nem pegar o elevador pra receber a pizza sem ter que passar pelo protocolo 2319. Não dá pra ver mais shows (daquele formato pré-lives, lembra?) nem exposições.
Quando a vida é ficar dentro de casa trabalhando, se cuidando e esperando o Átila deixar a gente sair, o aluguel caro de 30m² no nono andar de um prédio na capital do estado não faz mais sentido: Decidimos entregar o apartamento e voltamos - pelo menos por hora - pro interior. A saudade da vida em São Paulo é grande, os amigos fazem mais falta do que eu sequer imaginava (e olha que eu já imaginava) e a simples rotina da nossa vida pré-pandemia já vem em forma de lembrança saudosa com aquele gosto agridoce das coisas irrecuperáveis - OLHA O DRAMA que eu ia fazer se tivesse parado pra escrever uma newsletter só sobre isso. Bola pra frente. Quem sabe um dia a gente volta mas, no momento, esse cometa parte de Ribeirão Preto.
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Mas se as dores da vida em 2020 não me fizeram sentar pra escrever, as delícias conseguiram, e a história que eu vou contar pra vocês envolve dois artistas que eu admiro demais, uma geladeira russa com cinco torpedos dentro, um quindim e um videoclipe:
Quem me conhece minimamente bem sabe que eu sou fã de Pato Fu. É simplesmente uma dessas coisas que acabam, sem a sua intenção, te definindo pra sempre nos grupos de amigos e familiares. Desde a pré adolescência, quando eu ganhei o Tem Mas Acabou do Pedro, um amigo/meio-primo/quase-irmão, o negócio bateu forte: Completei a coleção de CDs no tempo em que a gente ainda usava CDs, e o som da banda seguiu comigo, pra vida. Durante a faculdade eu cheguei a fazer trabalhos acadêmicos e pessoais usando músicas deles. E, dentro do Pato Fu, sempre admirei demais o trabalho do John Ulhoa, guitarrista/produtor/programador/companheiro da Fernanda Takai - inicialmente por ser o guitarrista que tocava aquele som interessante, depois por entender que se não fosse por ele, toda aquela loucura não existiria, sendo o produtor/inventor de boa parte daquilo tudo.
Fora do Pato Fu (mas interseccionando com eles em momentos da carreira, produzindo ou participando de várias das músicas que eu mais gostava), também existia o André Abujamra, que fui conhecer já mais velho e realmente interessado em música diferente. Não dá pra ser o cara que gosta de umas músicas mais esquisitas na turma, no Brasil pós anos 90 e não conhecer Karnak, Os Mulheres Negras, ou mesmo os trabalhos solos do Abu.
O fato é que esses dois caras, John Ulhoa e André Abujamra decidiram fazer um disco de experimentação. Em 2005. E aí, como acontece nas melhores famílias, a coisa foi engolida entre outros projetos e acabou ficando engavetada, com coisas já feitas e outras pra serem produzidas. Veio aí 2020, provavelmente o ano mais maluco da vida de quase todo mundo que tá vivo, e o isolamento foi o empurrão que faltava pra eles retomarem a ideia: Em um semana, produziram cinco faixas, juntaram com as seis que já existiam e finalizaram num projeto novo. O nome do projeto? Segura:
AbcyÇwÖk - assim, com 'ç' e 'ö' maiúsculos, mesmo. Um prêmio pra quem conseguir pronunciar isso.
Não, sério, rolou um concurso no instagram do projeto, onde os caras pediam pros seguidores mandarem suas tentativas de pronunciar AbcyÇwÖk. De acordo com eles, o vencedor ganharia "uma geladeira russa com cinco torpedos dentro". 🤷♂️
Eu, que já tava 110% embarcado na sonoridade meio-roque/meio-eletrônica/totalmente-maluca, fiz minha entrada na competição, de forma didática e auxiliado pelas letras gigantes que apareciam na tela e ajudavam a extrair o que eu imaginei que era o grande lançe da palavra: O "Ö" - que interpretei ser um emojinho assustado e, portanto, exigir a mesma expressão na hora de falar.
tipo isso
Passado um tempo, a banda fez um post criticando duramente a pronúncia dos concorrentes até o momento. De acordo com eles:
Correndo o sério risco de ficar com a geladeira russa com 5 torpedos encalhada aqui. Ninguém tá seguindo o básico do novo acordo ortográfico texano. Vão aí duas dicas fundamentais, sobre os pontos mais sensíveis da pronúncia de ABCYÇWÖK. Em primeiro lugar, o Ç é mudo. Isso a maioria acertou, aparentemente sem querer. E finalmente, sobre o Ö. É uma questão de obediência civil. O que significa “trema”? Trema, é o quê? Um substantivo? Ou um verbo? Cês tão muito ligados nas formas ortodoxas de interpretação de texto.
Atenção para essas duas partes: "o Ç é mudo" e "O que significa "trema"? Trema, é o quê? Um Substantivo? Ou um verbo?"
Foi aí que entendi onde morava o problema: Além de desrespeitar o novo acordo ortográfico texano que definiu o caráter mudo do 'Ç', eu tava analisando o 'Ö' pela chave visual do emoji e não pela chave verbal imperativa. TREMA NO O, na verdade, era uma ordem. Não existe AbcyÇwÖk se você não tremer no Ö.
Com base nas então recentes descobertas, realizei uma segunda e última tentativa. Só que dessa vez emprestei uma cena de um seriadinho aí, que quase ninguém conhece.
se o seu rosto não fica assim enquanto você fala AbcyÇwÖk, você tá falando errado.
E aí algumas semanas se passaram, não houve mais comunicados ortográficos por parte da banda, e a vida seguiu. Pra mim, a coisa ficaria por isso mesmo: Foi divertido participar, foi engraçada a piada da geladeira russa com os cinco torpedos mas claro que uma coisa informal e excêntrica dessas não teria vencedor, e muito menos um prêmio real, certo? Errado.
prints pra provar que existiu
A banda (pelos dedos do Abu) me contatou e realmente pediu meu endereço. O negócio tinha ficado sério. Eu iria, realmente, ganhar uma geladeira russa, com 5 torpedos dentro, seja lá o que isso fosse.
Agora a narrativa se bifurca e quem decide a sequência é você! Mentira, sou eu, mas tenha isso em mente.
Dias depois, chega uma encomenda pelo correio. Era ela, em toda sua magnitude. A geladeira era real, os torpedos eram reais. Em toda minha vida, nunca imaginei que um dia receberia um negócio desse. Veja com seus próprios olhos num review filmado que fiz.
geladeira fechada / aberta com mantimentos e torpedos / detalhe dos torpedos
Desde então, vivo feliz de geladeira nova. Ela é ótima e nunca deu problema elétrico. O pessoal teve a consideração de mandar produtos não-perecíveis dentro dela e eles também seguem firmes por aqui, pra quando a fome bater. Já os torpedos eu achei que vieram meio amassados, mas isso foi pra conseguir passar pela alfândega - afinal, o negócio veio da Rússia.
Mas lembra quando a narrativa se bifurcou? Então:
Na verdade eu emiti a parte mais doida de tudo isso, que aconteceu logo após as mensagens pedindo meu endereço, antes mesmo da geladeira sair da Rússia com destino à estação de tratamento dos correios em Curitiba. E aí você se pergunta "mas o que poderia ser mais doido que ISSO?" e eu te digo: O mais doido foi o que seguiu:
juro, galera
Num ímpeto de cara de pau misturado com vontade real de participar de qualquer coisa desse pessoal, literalmente aproveitei o momento pra oferecer meus serviços, o famoso qualquer coisa tamo aí já tão comum aos profissionais do audiovisual, que baseiam relações profissionais inteiras em conversas nesse tom.
O que eu realmente não esperava era essa resposta, que chegou logo depois e sem cerimônia nenhuma.
De repente, assim: Num momento eu estava passando meu endereço pra receber uma geladeira com cinco torpedos; no momento seguinte, estava aceitando fazer um clipe pra um projeto maluco de dois caras que eu admiro há décadas - em troca de um quindim. 🤯!
A conversa seguiu, eles me passaram a música escolhida e me deram o "briefing", que ao mesmo tempo foi o melhor e o mais aterrorizador possível: Faz o que você quiser. Também não teria prazo fixo - afinal o próprio projeto demorou 15 anos pra nascer. Ao mesmo tempo que isso é o sonho, por não ter pressão alguma, também é um pouco amedrontador - ainda mais pra um ansioso - por basicamente eu ter a possibilidade de escolher, no universo infinito das ideias, alguma que não agradasse por lá, ou que eu demorasse mais de 15 anos pra fazer o negócio, e aí o clima ficaria chato. Mas, piadas à parte, o sentimento da coisa toda foi totalmente positivo e todas as evoluções que tinha, desde a apresentação das minhas ideias até o envio de partes da música já editadas no clipe, foram bem recebidas. Tanto que parte das ideias envolvia eles gravarem material em vídeo deles próprios e me mandarem (o que daria trabalho pro lado deles e poderia não ter sido exatamente a intenção quando me pediram pra fazer o clipe), o que fizeram prontamente, me enviaram já no dia seguinte e eu não tive nem aquele tempinho gostoso que todo freelancer conhece, da bola estar temporariamente do outro lado da quadra. Eles aparentemente tavam botando fé no negócio - e eu tava animadíssimo por aqui.
Depois de quase dois meses encaixando o clipe entre freelas e videogames, cheguei ao que poderia ser a V1. Finalizei, exportei e mandei pra eles. E aí, numa surpresa que é sempre tão agradável quanto a primeira vez que acontece, os caras aprovaram de primeira. É aí que o profissional do audiovisual vê que tá lidando com pessoas incríveis: Quando não tem a V2. Deu tudo, tudo muito certo. E aparentemente agradou tanto que eles se empolgaram em fazer até um lançamento oficial em parceria com o blog Hits Perdidos!
olha, mãe, sou eu!
E aí, meus amigos, o resto é história. Fiz um clipe pra dois caras que admiro há décadas, e tudo começou com uma geladeira russa, no meio do ano mais insano da minha vida. É mole?
E, como bom enrolão que sou, já conhecido internacionalmente por meus prólogos intermináveis, claro que ainda não linkei o negócio do qual tô falando há tantos scolls. Vamo nessa?
Veja o clipe!
🤯
Costumo tentar terminar as newsletters com aquela manjadíssima seçãozinha de dicas ou comentários sobre coisas que tenho consumido (geralmente música, jogos ou séries), mas já escrevi tanto nessa edição que certamente ficaria cansativo pra vocês. Além disso, o tempo passou tão violentamente desde o último cometa - cronologica ou subjetivamente - que inevitavelmente vou estar injustiçando coisas boas dos últimos nove meses que passei sem aparecer. Nesse meio tempo teve tanta coisa! No mundo da música, o próprio AbcyÇwÖk (que eu já indicaria mesmo sem essa história ter acontecido), os discos novos dos Flaming Lips e dos Strokes; Nos videogames, teve Animal Crossing, Risk of Rain 2, o remake de Tony Hawk's Pro Skater 1 e 2 - e até o Hades que comentei nas últimas sugestões saindo do beta; Já nas séries os destaques foram Normal People, Broad City e I May Destroy You, além de rever um tanto de The Office e Parks&Rec, que é sempre bom.
Isso tudo sem contar novos interesses que esse efeito de "não sei o que fazer com o meu tempo" da pandemia acabou despertando em mim, que vão do ilusionismo à astronomia. LITERALMENTE.
É tanta coisa que eu acho que vou fazer uma órbita bem mais curta dessa vez e logo volto repassando essas coisas todas. Claro que não é uma promessa, deus me livre prometer alguma coisa em 2020. Mas quem sabe, né?
No mais, desculpem a demora em aparecer e o cometa excessivamente longo. E, se algo daqui - da saída de São Paulo à chegada da geladeira russa - te impactou um pouco mais, por favor fique à vontade pra responder esse email e me diga!
Até a próxima e, por favorzinho, use máscara e lave as mãos ❤